A Morte Feliz do Herói

“O destino não está dentro do Homem, mas à sua volta.”,
Albert Camus, A Morte Feliz

Patrice Mersault - personagem principal da obra “A Morte Feliz” (1936-1938) de Camus, publicada postumamente – constitui a meta-imagem do herói com que, pessoalmente me identifico. Todavia, o que são os heróis senão meros arquétipos idílicos que nos reportam para uma imagética onírica em que nos sentimos despertos? Amamos as personagens que pelos seus actos se elevam a nós, sendo que ao mesmo tempo reproduzem em actos figurativos, princípios que consciente/inconscientemente nos são preciosos.

Se na literatura existencialista francesa, Mersault e a sua vítima, Roland Zagreus, são os meus heróis, consequentemente, Elisabeth Vogler, “Persona” de Ingmar Bergman e “4:33” de John Cage; serão os seus correspondentes heróicos no cinema e na música. Todos estes se reportam para a angústia da existência cinzenta do quotidiano – o ciclo da “ sensação , nutrição, mastigação e procriação” que o artista inglês Austin Osman Spare, identificava – a derradeira negação da alienação mortal e massificada da vida. E a perseguição de um ideal de libertação lúcida e construção da felicidade.

A felicidade não é possível de ser comprada. Mas é preciso comprar-se o tempo, para se ter tempo de ser feliz. E ser feliz é Ser-se. Zagreus sabia-o. Tendo sofrido um acidente de viação, vê-se encarcerado numa cadeira de rodas. Dependente de empregados para o vestirem e lavarem, devido a amputação de ambas as pernas. É assim, descrito, o iniciador de Mersault. Que lhe confere o conhecimento da chave para atingir o seu próprio destino, ao dizer-lhe:

“Posso ficar cego, surdo, mudo, tudo o que você quiser. Desde que sinta nas entranhas esta chama sombria e ardente que é aquilo que eu sou, e aquilo que eu vivo, apenas pensarei em agradecer à vida por me ter permitido sobreviver (…) E você Mersault (…) o seu único dever é viver e ser feliz.”

Mersault, empregado medíocre, vizinho de um ser imundo e juiz frio da sua própria detestável existência, mata Zagreus e rouba o dinheiro deste. O crime mais hediondo é cometido, logo no primeiro capítulo. Mas não há vestígios de culpa, não há moral, pois: “Muitas dores aguardam aqueles que vos amam (…) O amor que me dedicam não me obriga a coisa nenhuma.”. Patrice parte rumo a Praga, voltando de seguida ao Sol quente de Argel. Vive na “Casa diante do Mundo” e morre na “Casa em Chenoua", diz-nos que o amor é dispensável. Procura a solidão. Vive à margem do mundo, é um estrangeiro que goza de boa hospitalidade.

A relação entre o silêncio e a solidão é de máxima importância, tanto para Mersault como para Elisabeth Vogler. Em Persona, Vogler é uma actriz que após um ataque de riso em pleno palco, se cala durante um tempo indeterminado. Internada num manicómio, a directora e a enfermeira Alma, sabem-na sã mentalmente.
Apenas fechada ao mundo. Em silêncio, não há nada. Não há decisões, não há “máscaras”. Porém, o silêncio ao ser a recusa da acção encerra em si, o mesmo princípio que Prometeu, de Ésquilo, ditava a Hermes. Ao afirmar-lhe que mesmo agrilhoado e em perpetuo suplicio era mais livre que o Deus mensageiro com asas nos pés.

Porém, “a vida infiltra-se por todo o lado”, e Vogler rompe num gesto impulsivo o seu silêncio. Tal não acontece com Patrice, ele consegue até ao fim consumar o que ele decidiu ser o seu destino e ter uma morte feliz:

“De todos os homens que transportava no íntimo, como cada homem no começo da vida, de tantos seres diferentes que misturam as suas raízes sem contudo se fundirem, sabia agora qual deles ele tinha sido. E essa escolha que cria o destino de um homem, tinha-a feito conscientemente e com coragem. Aí residia toda a felicidade de viver e de morrer.

Compreendia que ter medo daquela que ele encarara com uma angústia animal era também medo da vida. O medo de morrer justificava um apego sem limites a tudo o que é vivo no homem. E todos aqueles que não tinham praticado os gestos decisivos que enobrecem uma vida, todos aqueles que temiam e exaltavam a impotência, todos os que tinham medo da morte, pela sanção que ela imprime a uma vida de que sempre tinham ficado distantes. Não tinham vivido suficientemente, nunca tinham vivido.”

John Cage devotou 4 minutos e 33 segundos ao silêncio, representado simbolicamente por uma orquestra em que nenhum instrumento foi tocado. Tal conceito não é totalmente original, se tivermos em conta as ingressões radiofónicas de Fillipo Tommaso Marinetti, no seu programa “Os silêncios falam entre si”. O Teatro Futurista Radiofónico era assim composto por sons atmosféricos intercalados com oito a quarenta segundos de “puro silêncio”.

O desapego ao “mundo” a inversão e destruição dos papéis sociais constitui uma transição da situação humana – enquanto ser biologicamente social – para um estádio superior, pós-humano. Não é isso que os heróis representam? Seres transitórios. Humanos que tocam o divino: a vivência plena da sabedoria sentida, a qual chamamos “felicidade”.




0 comentários: